OPINIÃO

Compare duas situações corriqueiras durante um curso de graduação em Direito.

Na primeira, um professor de Ética profissional da advocacia entra em sala de aula, monta seu powerpoint (ou apaga a lousa e se mune de um giz) e começa a expor a lista de prerrogativas dos advogados contida no artigo 7º do Estatuto da Advocacia.

Vamos imaginar também que os estudantes são dedicados, motivados, apesar de já estarem no último semestre do curso, fazerem estágio, terem que concluir seu TCC, suas horas de atividades complementares e estarem às vésperas de fazer a segunda fase do Exame da OAB.

São 21 incisos e 24 parágrafos. Apesar de toda a motivação e disposição dos estudantes e talento pedagógico do professor, é provável que a atenção da plateia se disperse logo nos primeiros parágrafos. A partir daí nada do que o professor disser penetrará no cérebro do estudante, por mais habilidoso que seja o mestre e por mais dedicados que sejam os estudantes.

Agora, imagine, ainda nessa primeira situação, o seguinte método de ensinar a mesma matéria: o professor cria uma situação fática em que o estudante se coloca na posição de advogado e pede para que ele reaja diante das diversas circunstâncias que podem envolver o recurso a uma prerrogativa da advocacia.

O aluno-advogado então é colocado diante de um delegado que lhe recusa o direito de acesso ao cliente preso, porque não tem procuração; diante de um servidor do tribunal que não lhe permite o acesso aos autos de um processo que não corre em sigilo; ou então recebe uma ordem de prisão de um juiz durante uma audiência.

Agora suponha que essas reações sejam mensuradas por critérios objetivos e, a cada reação correta do aluno-advogado, ele seja recompensado com pontos. E que esses pontos vão se acumulando ao longo das diversas atividades pedagógicas e comparados com o desempenho de um colega que está resolvendo o mesmo caso.

O engajamento dos estudantes para essa segunda abordagem pedagógica é muito mais eficiente, porque não leva o estudante a decorar a matéria, mas a aprender pela experiência. E se errar, poderá aprender com seu próprio erro.

Agora imaginemos a segunda situação usual no aprendizado do Direito. O mesmo professor de Ética, uma semana antes da aula descrita na primeira situação, exorta os alunos a lerem, em boas obras de doutrina, sobre o tema das prerrogativas advocatícias.

No primeiro cenário, o (bom) estudante vai à biblioteca (ou acessa a biblioteca virtual) e busca um dos livros recomendados. Inicia a leitura pelo sumário e busca ali a referência ao assunto que precisa estudar. Vai até o capítulo correspondente e inicia sua leitura linear do início ao fim.

A chance de que esse estudante se desmotive ao longo desse processo é enorme. A chance de que retenha menos do que o necessário para se preparar para a aula futura é maior ainda. Não é culpa do aluno, nem da obra. O método é desestimulante. Não há respostas a serem buscadas no livro, não há desafios instilados na mente do estudante, além do de se manter acordado durante a leitura.

Compare agora com a seguinte alternativa pedagógica para a mesma segunda situação. Primeiro, o estudante deve ler uma sequência de trechos previamente selecionados pelo professor, que respondem direta ou indiretamente aos diversos aspectos daquele problema criado pelo professor na primeira situação acima.

O aluno-advogado lerá os textos com objetivos previamente definidos: ele precisa encontrar respostas ali para o problema hipotético criado pelo professor. Segundo, para acompanhar se o aluno-advogado está mesmo lendo e entendendo o texto, para cada texto selecionado se apresentam diversos testes de compreensão e interpretação do texto. Nada além de cobrar do aluno-advogado que demonstre ter entendido bem o dito pelo autor naquele trecho específico. Se apontar corretamente o que disse o autor, sua pontuação aumentará. Ele terá a sensação de que está acumulando saberes, terá um rigor maior na leitura do trecho, e estará preocupado não apenas com a nota que terá ao final da atividade, mas também com o seu oponente, que poderá somar mais pontos do que ele.

As duas situações demonstram posturas pedagógicas bastante distintas. A primeira se filia a uma tradição secular no Direito, tem sido relativamente bem-sucedida através de gerações e é a predominante nos cursos de direito no Brasil. A segunda é uma forma nova, chamada de gamificação, que se insere num conjunto de técnicas chamadas de metodologias ativas e que visam suscitar maior engajamento do estudante. Mas ainda tem poucos adeptos, quando comparada com a primeira técnica, a tradicional.

A primeira metodologia se encontra em crise, porque novas gerações de estudantes manifestam em relação a ela uma resistência explícita, que gerações anteriores sentiam, mas não ousavam declarar. A segunda metodologia vem acenar com a possibilidade de despertar no estudante o desejo de se engajar intensamente no trabalho de estudar Direito.

A diferença fundamental entre a metodologia tradicional de ensinar o Direito e a metodologia ativa de gamificação: a primeira dá as respostas aos alunos antes que eles saibam sequer o que são as perguntas. A segunda apresenta primeiro as perguntas aos alunos, depois os incumbe de achar as respostas e os auxilia e motiva no processo.

Técnicas pedagógicas por meio de jogos


A gamificação é o uso, no processo pedagógico, de elementos típicos de jogos, como pontuações, badgesrankings, premiações e desafios, com o objetivo de obter dos alunos maior engajamento no estudo. A possibilidade de o jogador-aluno acompanhar seu progresso, competir com os colegas e vivenciar a sensação de realizar uma aspiração o ajudam a manter o foco e a motivação. No caso do Direito, cujo ambiente profissional é fortemente relacionado à competição (ganha-se ou perde-se uma ação judicial, por exemplo) o paralelismo é ainda mais evidente.

Os professores Rafael Savin e Vania Ribas Ulbricht, da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), escreveram um precursor artigo já em 2008, em que sustentam que os jogos digitais preparados para o contexto educacional, incluindo alguns tipos de simuladores, são chamados de jogos educacionais ou jogos sérios (serious games). “Normalmente”, prosseguem os autores, “quando se divulga a utilização de jogos educacionais, há um destaque para o poder motivador dessa mídia. Mas o potencial deles vai muito além do fator ‘motivação’, pois ajudam os estudantes a desenvolverem uma série de habilidades e estratégias e, por isso, começam a ser tratados como importantes materiais didáticos” (Gros, 2003)[1]

Num seminal artigo publicado em 2016, o professor Daniel M. Ferguson, da Fowler School of Law, Chapman University, avaliou a contribuição que a técnica de gamificação pode aportar ao aprendizado do Direito. Baseado na obra de Salen e Zimmerman, Ferguson afirmou que “há muitas definições concorrentes para o que constitui um jogo, mas uma definição aceita é que um jogo é um sistema no qual atores participam de um conflito artificial, definido por regras, que conduzem a um resultado quantificável” [2].

Ferguson aceita como ponto de partida que os jogos usam conflitos artificiais porque eles permitem o uso da abstração e permitem aos jogadores que errem.  Os jogadores sabem que os obstáculos são artificiais, o que provoca neles uma reação diferente daquela que ocorreria numa situação real. Na situação real, quando tememos errar ou falhar, se desencadeia uma forte ativação neuroquímica que nos deixa nervosos ou nos faz querer fugir e nos fechar emocionalmente.

Como os jogos são por definição suscetíveis de resolução e oferecem aos jogadores um ambiente seguro para cometer erros, a falha passa a ser uma parte fundamental do aprendizado. O jogo incorpora o erro como parte fundamental do seu funcionamento. Aplicado à educação, o recurso da gamificação trata o erro como parte do processo de aprendizado.

E isso tem um impacto muito interessante sobre outro componente do processo educacional que se encontra em crise atualmente: as provas. Até hoje, dentro do sistema tradicional de ensino, os alunos devem ser capazes de, no dia e hora marcados, demonstrar que retiveram os ensinamentos ao longo do curso. Acertando ou errando, seu desempenho será definido e sua nota somente pode ser alterada em combinação com as outras avaliações do semestre letivo.

Esse sistema está em crise pelos mesmos motivos que o sistema de ensino impositivo, baseado na voz de autoridade do professor, também está: as novas gerações não aceitam com tanta docilidade como as anteriores a hierarquia automática entre professor e aluno. Provas de oportunidade única são consequência natural do sistema impositivo de ensino. Quando este é contestado, leva de roldão suas demais articulações, como as provas.

Mas pergunto: o fim do processo pedagógico é o de mensurar o aproveitamento do aluno ou é o de que este aprenda? O sistema tradicional de provas de oportunidade única se justifica como forma de constranger o aluno a estudar. Mas e se o professor não consegue mais suscitar no aluno o temor reverencial para que estude? A resposta é que se o estudante for estimulado a se dedicar por outras maneiras, não impositivas, a aprender, não importa a quantidade de tentativas que ele leva para tanto. Se ele aprender, dou por cumprida a missão de ensiná-lo.

Na gamificação posso criar, assim, métodos de avaliação inteligentes que são tolerantes ao erro e que não deixam de motivar o estudante. Alguém vai objetar, com razão, dizendo que se eu permitir ao estudante que tente tantas vezes quantas ele quiser, até achar a resposta boa, ele simplesmente adotará a postura de “chutar” a resposta, sem qualquer dedicação.

À objeção respondo: a gamificação tem recursos para tornar artificialmente escassas as oportunidades de acerto. Pode condicionar, por exemplo, a oportunidade de correção do erro à demonstração de que estudou mais, fazendo outros exercícios que, em princípio, não faria espontaneamente. Mas que, no contexto do jogo, se sente estimulado a resolver, apenas para ganhar o direito de corrigir o erro que cometeu.

Esses são apenas alguns exemplos de como utilizar a gamificação no processo pedagógico. Eles são tão numerosos quanto a capacidade criativa do professor. Todas as habilidades que se deseje desenvolver podem ser articuladas com a lógica dos jogos. Com isso, a gamificação é uma estratégia pedagógica que manipula positivamente o estudante, para que treine diversas habilidades e competências não porque foram impostas pelo professor, mas porque o aluno deseja espontaneamente fazê-lo.

Estado de flow e educação jurídica


O psicólogo húngaro Mihály Csikszentmihályi dedicou sua carreira acadêmica a estudar os processos mentais que ele depois batizou de “estado de flow“. Ele queria saber como os melhores atletas, artistas e profissionais alcançavam o alto nível de desempenho que os havia tornado justamente célebres. Depois de inúmeras entrevistas, ele desenvolveu o conceito de que o estado de flow é aquele em que alguém se encontra de tal forma imerso e concentrado numa dada atividade, que se desvencilha de outros pensamentos, não sente o tempo passar, deixa de lado preocupações autorreferenciais.

Um dos fundadores da chamada Psicologia Positiva, Csikszentmihályi diz que os melhores momentos em nossas vidas não são os momentos de relaxamento e passividade. Eles ocorrem, ao contrário, quando o corpo e a mente de alguém são levados aos limites num esforço voluntário para realizar algo difícil, mas que vale a pena [3]. O estado de flow é aquele que se alcança na busca dedicada de um objetivo que se encontra ligeiramente acima de nossa capacidade. E essa dificuldade é a razão pela qual, ao obtermos o que desejamos, nos sentimos recompensados e vivamente estimulados. Para o psicólogo húngaro, os jogos são por excelência uma experiência de flow.

O desejo de vencer, o temor de perder, o desafio aos seus próprios limites, a vontade de superação, presentes no jogo, são uma espécie de simulacro das situações reais na atividade profissional jurídica. As técnicas de gamificação incluem elementos que fortalecem essa disposição para a ação, materializados por pontuações, rankings, comparações, badges, que mantêm o jogador em permanente estado de alerta, engajado, envolvido.

Um dos maiores desafios que todo professor de Direito sente é o de transformar textos técnicos duros, minuciosos e áridos em objeto de interesse por parte dos alunos. Além da diferença de maturidade, o que faz com que o professor se entusiasme com os mesmos textos que o aluno despreza é que o professor sabe a utilidade daqueles conceitos. Os alunos, ainda não.

Ao simular a posição do profissional do Direito, os jogos proporcionam um ambiente em que essa diferença entre o professor e o aluno é atenuada. Porque ao se vivenciar no jogo o que o profissional deve enfrentar num caso concreto, os conceitos deixam de ser mera abstração e passam a ocupar um espaço de concretude muito mais visível ao aluno.

Assim, combinando casos práticos que precisam ser resolvidos autonomamente pelo aluno com o material de apoio previamente selecionado para que a tarefa seja factível, a gamificação permite que o aluno se engaje no aprendizado, sem que seja simplesmente abandonado à própria sorte.

Se os novos estudantes de Direito reivindicam métodos mais dinâmicos para o aprendizado do Direito, envolvendo-os na resolução de problemas concretos, a gamificação pode ser utilizada como valioso auxiliar da aula expositiva, que continua sendo necessária, bem entendido. Mas a pura exposição sistemática de conceitos e classificações ou de textos legais encontra-se profundamente desgastada e é objeto de justificadas críticas pelos estudantes. Uma aula expositiva, após os alunos terem se exercitado em jogos de aprendizagem jurídica como os descritos acima, muda completamente de clima e também de rendimento pedagógico.

Para aqueles que ainda não se convenceram do caráter sério da ferramenta gamificação, é preciso dizer que os conteúdos do que se ensina não precisam necessariamente ser mudados em uma única vírgula. A gamificação, em algumas de suas vertentes, só constitui uma nova forma de ensinar os melhores conteúdos do Direito [4].

É chegado o momento de dar ouvidos aos novos estudantes de Direito, não para reduzir a complexidade do Direito, mas para criar uma comunicação mais fluida com as densas disciplinas de formação profissional, valendo-nos de novas técnicas. Isso exige consciência da instituição, treinamento de professores e de estudantes. E sua implementação é uma medida de elevação da qualidade da educação jurídica.


[1] Jogos Digitais Educacionais: Benefícios e Desafiosin Cinted-UFRGS Novas Tecnologias na Educação, V. 6, Nº 2, Dezembro, 2008.

[2] FERGUSON, Daniel M. The Gamification of Legal Education: Why Games Transcend the Langdellian Model and How They Can Revolutionize Law School, 19 Chap. L. Rev. 629 (2016). Disponível em: http://digitalcommons.chapman.edu/chapman-law-review/vol19/iss2/10. Acesso em: 20.04.2023.

[3] CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. Flow: The Psychology of Optimal Experience, Nova Iorque, Harper-Collins, 2008.

[4] Para um minucioso levantamento de casos de aplicação de técnicas de gamificação no ensino jurídico no Brasil, v. Anne Karoline Bandeira Bonfim Leal e Francisco Kelsen de Oliveira, Ensino de Direito, aprendizagem baseada em jogos e gamificação na Educação Profissional e Tecnológica: uma revisão sistemática de literatura, in Revista Labor V. I nº 25, Universidade Federal do Ceará, 2021. Disponível em http://www.periodicos.ufc.br/labor/article/view/60225/196726, Aceso em: 23.04.2023.